top of page

RELATOS DE VIDA

Nesta página, você lerá experiências de vida de pessoas superdotadas.

Todos os textos podem ser reproduzidos, desde que citada a autoria.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Toda coisa tem um nome

“Toda coisa tem um nome” é o título de uma canção infantil que conheci por meio do DVD do Cocoricó, um programa criado e exibido pela TV Cultura. DVD que compramos para nosso filho mais velho quando este era pouco mais que um bebê. Um jogo de palavras, especialmente com “coisa” e “nome”, de modo simples, contando para as crianças que cada objeto, animal, planta, fruta, tem um nome e que precisamos desse nome para falar dessa “coisa”.

O trecho inicial diz o seguinte: “Toda coisa tem um nome/ Todo nome uma coisa/ Outra coisa outro nome/ Outro nome outra coisa/ Uma coisa é uma coisa/ Outra coisa é outra coisa/ Quanta coisa tem no mundo/ Que coisa eu me confundo/ E para falar coisa com coisa/ O homem em cada coisa, pôs um nome [...]”[1].

 

A canção sempre me agradou, pois possui uma verdade, talvez por eu amar escrever, amar as palavras, a riqueza que é a nossa Língua Portuguesa. Também me agrada muitíssimo a ideia de Clarice Lispector exposta num conto, quando o explorador se depara com a menor mulher do mundo: “Sentindo a necessidade imediata de ordem e de dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena Flor. E, para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito”[2].

Uma certeza atrelada a uma necessidade me consumiu a vida toda: “Sou estranho!” (a certeza). “O que tenho? O que sou?” (a necessidade). A certeza de que não era “normal”, de não me encaixar em nenhum grupo: família, escola, igreja ou qualquer outro grupo social. A necessidade de buscar respostas “por que sou assim?”, “para quê?”, era esquecida quando estava envolvido com as atividades que me deixavam feliz. Como a vida precisa seguir, para sobreviver ao mundo real, criei meu mundo particular, onde encontrava a paz e a felicidade: meu quarto! No meu quarto eu lia, escrevia, desenhava, executava mil projetos com tesoura, papel, cola, ouvia músicas em Português, Italiano, Espanhol, Inglês.

Caminhando contra todas as determinações para um filho de pedreiro e dona do lar, aproveitei todas as oportunidades de estudar e não desisti com o término do Ensino Médio, mesmo não tendo perspectiva nem dinheiro para cursar o Ensino Superior. Fiz um curso técnico numa escola pública, para dois anos depois entrar na Universidade Pública.

A certeza de que era um ser estranho permanecia. A necessidade de respostas tinha se apaziguado. Atualmente (ano de 2020), estou com 39 anos de idade. Somente há dois anos descobri o “nome” da minha “estranheza”: Altas Habilidades/Superdotação. O primeiro sentimento foi de alívio: não sou pura e simplesmente “esquisito”. A minha estranheza tem um nome. E que fascinante estranheza! A necessidade de ordem, dar nome às coisas e aos sentimentos. Colher dados sobre tudo isso. Tínhamos, minha esposa e eu, muitos dados, informações e conhecimentos sobre Altas Habilidades/Superdotação por conta do nosso filho mais velho.

Aos 37 anos de idade, precisei revisitar meu passado “enclausurado” no quarto e aprender a lidar com novos sentimentos após a descoberta do nome “Altas Habilidades/Superdotação” agora vinculado à minha pessoa: por que ninguém percebeu? Quantas oportunidades perdi? Como teria sido diferente se eu soubesse antes...

Porém, prevaleceu outro sentimento: o importante é que agora eu sei o que sou! Posso fazer as pazes com meus fantasmas do passado, realocar traumas para outras categorias (crescimento, amadurecimento – já estavam nessas categorias) e aproveitar todas as oportunidades que saber o nome da coisa que tenho/sou me oferece!

“Cartas do Menino do Quarto para o mundo” é o título do livro, cuja escrita pode ser chamada de processo catártico e terapêutico. Nele, escrevi cartas para pessoas do meu passado, presente e futuro, o meio que encontrei para levantar a bandeira branca com o que ficou para trás.

A primeira e mais concreta oportunidade de saber o nome é poder me identificar com outras pessoas: há outros estranhos! Cada um com sua peculiaridade, com sua idiossincrasia, mas que entendem o meu funcionamento, meu modo de habitar o mundo e refletir sobre ele. Por fim, ressalto que vale o esforço da viagem pela descoberta do “eu”. Leia sobre, converse com especialistas, leia mais, saiba das controversas, das versões, vá ao original, ao autor. Percebe as características ou indicadores em alguém próximo de você? Em você próprio? Lembre-se: cada coisa tem um nome. Vá atrás do nome!

Autoria: André Coneglian (2020).

[1] “Toda coisa tem um nome”, Júlio e sua Turma (Cocoricó).

[2] LISPECTOR, C. A menor mulher do mundo. In.: LISPECTOR, C. Laços de família: contos. 11 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. 

 

Eu sou superdotado

 

Eu nasci com altas habilidades/superdotação. Isso não foi algo que meu pai ou minha mãe escolheram para mim e definitivamente não foi algo que eu escolhi para mim. Muitas coisas eu aprendo muito rápido e fácil e muitas coisas fazem sentido em minha mente, então não precisam me ensinar. É como quando você vê a comida no prato, eu vejo energia, eu vejo nutrientes, eu vejo vitaminas.

Quando você liga o seu PS4 para jogar, eu estou pensando em como criar o jogo mais legal de todos os tempos. Minha mente está sempre girando como um disco em um console. Quando você vê as ondas do oceano, eu estou pensando sobre a lua e a força gravitacional entre ela e a terra. Eu fico maravilhado com o que ocorre com a lua.  Eu também quero construir um grande castelo de areia. Eu quero correr, pular e brincar. Eu devo guardar minhas roupas no guarda-roupa e eu ainda preciso de ajuda com meus sapatos. Eu não sou perfeito. Eu não sigo sempre as regras. Eu nem sempre sou aquele que faço tudo certinho. 

Eu posso ser um pouco seletivo com a comida porque algumas comidas soam estranhas na minha boca e eu não gosto disso. Eu posso ter uma super reação quando alguma coisa me afeta e não estou esperando por isso. Sim, eu sou esperto. Sim, eu sou avançado. Sim, eu converso bastante bem para a minha idade. Não é sempre só uma caminhada no parque e é difícil encontrar amigos, às vezes. Algumas crianças da minha idade não me entendem. Elas querem brincar com um avião e olham para mim achando graça quando eu falo sobre a pressão do ar e como ela ajuda o avião a voar.

 

Outros pais não querem ouvir minha mãe falar sobre mim e sobre as coisas que eu faço porque eles pensam que ela está se gabando. Eles acusam de super estimulação em casa porque não tem como uma criança pequena como eu saber tanto sobre mim mesmo. Às vezes, é difícil ter altas habilidades/superdotação, mas é realmente um presente. Eu quero aprender todos os tipos de coisa. Eu quero fazer perguntas. Eu quero compreender o mundo e ajudar pessoas também. Eu sou um líder natural. Eu sou único. Eu sou talentoso. Eu tenho altas habilidades/superdotação.

Fonte: disponível no youtube, legendado em inglês. 

https://www.youtube.com/watch?v=VCGNGBGRmlA&feature=youtu.be

Tradução: Patricia Neumann, 2020.

Uma flor no deserto

Eu sempre fui muito emocionalmente sensível a tudo desde criança. Sempre preocupada com  sofrimento de pessoas, animais e plantas. Se tinham fome ou frio. Quando tinha uns três anos, fiz uma viagem de ônibus com minha mãe para visitar minha avó. Numa rodoviária, vi pela janela um cachorro que, para mim, deveria estar abandonado. Eu queria descer e ajudá-lo, mas, obviamente, minha mãe não deixou. Até hoje eu choro quando lembro disso.

Quando criança, eu chorava por qualquer coisa que indicasse sofrimento de alguém, mesmo que eu soubesse que fosse uma ficção como em desenhos animados. Lembro de ter uns seis anos e ver um desenho onde uma menina tinha ficado órfã. Chorei, mesmo sabendo que era só uma história. Ser supersensível emocionalmente não é algo que a gente escolhe. É como um braço ou uma perna, não tem como tirar fora ou fingir que não existe. Eu simplesmente sinto, assim como respiro. É algo que acontece sem minha vontade consciente. Qualquer coisa me emociona muito, seja uma situação positiva ou negativa.

É bom ter essa sensibilidade, mas também não é fácil. Já sofri muito por causa disso até começar a aprender a lidar. É um desafio pra vida toda. Com o tempo, aprendi a não pensar muito em certas coisas para evitar sofrer. Se eu pensar nas pessoas que não têm o que comer, que morrem por violência, que moram nas ruas, que estão doentes...é impossível não me sentir triste e impotente. Quando era mais nova, doía mais de saber que eu não podia fazer nada para evitar as guerras ou ajudar os que sofrem. A forma que encontrei para lidar com a dor que sinto pelo sofrimento de pessoas e animais é evitar pensar muito.

 

Sempre quis entrar para os Médicos Sem Fronteiras, mas percebi que não dou conta emocionalmente. Eu adoeceria em presenciar certas coisas. Então tento direcionar minha supersensibilidade emocional para outras coisas. Então ela se tornou muito útil e me ajuda no dia a dia nas relações com as pessoas. Eu a aproveito em tudo que faço. Mas a caminhada até aqui não foi nada fácil. Precisei de anos de terapia para aprender a usar a sobre-excitabilidade a meu favor.  Hoje, eu me conheço e compreendo quando algo me afeta demais. Já sei que é por causa da minha supersensibilidade. Sei que aquela situação pode ser um grão de areia para os outros, mas para mim é o deserto do Saara. E sei que para a maioria das pessoas é só o grão de areia. Antes, eu não entendia o porquê só eu parecia perceber certas coisas e me importar.

Comumente as pessoas que não têm sobre-excitabilidade emocional não entendem o porquê a gente sofre e acham que é exagero. Levou um bom tempo pra eu entender que os outros não eram como eu e antes de eu entender, eu sentia muita raiva. Afinal, como era possível que as pessoas não se preocupassem com os pobres ou os animais abandonados ou a poluição dos rios?! Pra mim estas sempre foram as coisas mais importantes de se ocupar, pois o sentido da vida estava sempre totalmente ligado ao bem-estar de todos, sem exceção. Levando em conta que estes eram meus pensamentos desde por volta dos seis anos, eu sofri bastante. A sobre-excitabilidade sempre potencializou meu sofrimento pelos problemas do mundo, além de sofrer pela falta de empatia dos outros e por me sentir, às vezes, bem sozinha. 

Mas com os anos, aprendi a lidar melhor com tudo isso. Aprendi a aceitar que não poderei ajudar a todos, mas poderei ajudar quem estiver ao meu alcance e de muitas formas diferentes. Aprendi a lidar com a insensibilidade da maioria das pessoas, embora continue a não ser fácil nem agradável. Aprendi a encontrar pessoas como eu. Usando uma metáfora, eu diria que a sobre-excitabilidade é como uma flor num deserto. A flor é o diferencial. Então, enquanto todo mundo ao meu redor está insensível a algo, eu não estou. Hoje, eu vejo a sobre-excitabilidade como algo mais positivo que negativo. Tem momentos que me sinto bem e tem momentos que me sinto mal... e tudo é sentido e vivido intensamente. A vida nunca passa despercebida.

Autoria: Patricia Neumann (2020).

Maior que o corpo

 

A minha mente é como se fosse um monte de pontinhos, uns mais agrupados e outros mais dispersos, mas todos interconectados. Gosto de pensar que cada pontinho é algo que eu já aprendi, qualquer coisa. E eu aprendo a todo momento, aprendo qualquer coisa que exista para ser aprendida. É uma coisa que nunca para, nem mesmo dormindo. Porque no sono, eu sonho. E já aprendi grandes coisas sobre mim mesma através dos sonhos. Imagine, então, todos estes pontinhos fazendo e desfazendo ligações uns com os outros.  É mais ou menos assim que acontece. Minha mente nunca descansa. Mesmo que eu queira descansar, é difícil diminuir o fluxo, pois penso o tempo todo sobre milhares de coisas e vou fazendo as conexões entre elas fluidamente. Muitas vezes é difícil dormir por causa disso.

 

Minha mãe diz que eu sempre tive o sono muito agitado, desde que nasci. Que eu jogava para fora as cobertas do berço. Eu sou assim até hoje. O sono é muito agitado e nunca acordo do mesmo jeito que deitei. Não raro, as cobertas estão pra fora da cama... Outra coisa que minha mãe diz é que falo dormindo (obviamente, eu não vejo, rs). Inclusive, ela diz não falo só em português enquanto durmo. Falo em inglês também.

Desde criança percebi que eu era diferente das outras crianças. As outras eram mais "lentas". Levavam bem mais tempo para entender certos raciocínios e nem sempre entendiam enquanto eu tinha entendido em um piscar de olhos. E eu já queria ir adiante na próxima ideia. Lembro, uma vez na escola, estávamos montando quebra-cabeças, algo que eu sempre adorei! Tinha um quebra-cabeça grande e que todas as crianças tinham tentado montar sem sucesso. Eu fui a última a tentar e a única a conseguir, aliás, em poucos minutos.

Eu sempre fui extremamente observadora e aprendo muito com isso. A cada observação, uma nova conexão se faz na minha mente com os conhecimentos que eu já tinha. E isto só tem se multiplicado ao decorrer dos anos. Percebo que a velocidade com que isso acontece tem aumentado. Meu raciocínio é bem mais rápido hoje que anos atrás. Então, para resolver alguma coisa, seja ela teórica ou prática, eu isolo o problema no meio da situação, depois analiso o problema e o máximo de variáveis que estão influenciando para que ele permaneça, busco nos meus conhecimentos as alternativas do que é melhor fazer, pondero sempre perdas e ganhos e se não encontro uma alternativa realmente viável dentre as opções iniciais, eu parto para a criação de uma alternativa nova. Então vem o processo mental de criação.  E quando falo de problemas, são desde os mais complexos até os mais simples do dia a dia. Isso nunca para e, às vezes, eu gostaria de que minha mente funcionasse um pouco mais devagar... pois é frustrante ter mais ideias que tempo ou energia para realizá-las. Eu sinto como se minha mente não coubesse no corpo, que é maior que ele.

Autoria: Patricia Neumann (2020).

flor.jpg
flor.jpg
flor.jpg
flor.jpg
bottom of page